Se há ramo da Biologia que parou no tempo, é sem sombra de dúvida a Anatomia, mais especificamente a Anatomia humana. Pode em relação a esta ciência falar-se inclusive numa próspera e credível fase, até ao ano de 1987, e num estacionário estado após a efeméride verificada em Viena de Áustria no dia 27 de Maio de 87. Se até essa data seria compreensível que a definição de calcanhar contemplasse apenas a básica constituição do mesmo como sendo a “parte posterior, geralmente proeminente, do pé do ser humano”,a partir dessa data não há explicação plausível para que da mesma não constasse um nome: Madjer. É lá possível desassociar o nome do Argelino de tudo aquilo o que nos vem à cabeça quando falamos num calcanhar. Pessoalmente quando me falam em calcanhar do que me lembro é da cara do Madjer, e só depois disso é que eventualmente associo a uma parte do pé. Com sorte.
Em 1987 tinha 7 anos mas lembro-me do jogo como se fosse ontem. Se calhar isso tem a ver com o facto de também o ter visto ontem, e na semana passada e há uns meses.Os VHS primeiro, os DVDs depois e o YouTube actualmente não me deixam esquecer esse jogo, mas estou plenamente convencido de que tais auxiliares de memória seriam desnecessários porque nunca me esqueceria do dia em que o meu clube deixou de ser um dos maiores clubes de Portugal para iniciar sua caminhada rumo ao topo do Mundo. Não fui festejar para a baixa. Sempre fui o único “doente” pelo Porto numa família maioritariamente constituída por adeptos de outros clubes, pelo que tive de me contentar em adormecer feliz com a certeza que fazia parte de algo muito grande. Se fosse hoje tinha fugido de casa. Não por ter medo que tal conquista não se repetiria (no Porto não existem esses medos) mas pela consciência que só hoje consigo ter do que aquele jogo significou para todos.
Aquele calcanhar, a menos de 15 minutos do final do jogo mais importante do planeta, não se traduziu num simples encaminhar de uma bola para a baliza. Foi o azar, o fatalismo e a acomodação ao triste fado de ser Português que aquele jogador, em representação do Porto atirou para trás das costas. Nesse jogo eu estava certamente preocupado com as lesões dos imprescindíveis Gomes e Lima Pereira,chorei decerto com o golo fortuito do Bayern, provavelmente desanimei com o azar da incrível arrancada do Futre não ter acabado em golo, assustei-me sem dúvida com os milhares de adeptos Alemães em comparação com a insignificante minoria de Portistas que estavam nas bancadas, tremi ao constatar o palmares do nosso adversário…Tudo estava contra nós. Mas aquele gesto, aquele “coice”, aquele calcanhar…como lhe quiserem chamar, diria se falasse que ” Não há derrota que derrote aquele que nasceu para vencer”. E diria-o com o maior desplante, atrevimento e desfaçatez que se pode imaginar.
Um toque de génio que foi ao mesmo tempo um toque de treta, a provar que afinal o impossível era tão simples. Se é verdade que nada acontece por acaso, então a partir dali nada poderia ser igual. A grande questão era a de se saber a partir daquela base, daquele “atirar para trás toda a triste sina ” quanto tempo demoraria o Porto a ser de facto um dos melhores e mais conhecidos clubes do mundo. Seria um ano? Seriam 10 anos? 100 anos? Foram 3 minutos. Juari. Um metro e 68. A metáfora perfeita. O gigante caia aos pés da arma secreta que no meio dos matulões alemães empurra o esférico para a baliza e o meu Porto para o reconhecimento eterno. Aqueles 10 minutos finais, pareceram durar…10 minutos. Já ninguém nos poderia tirar a taça. Já não havia lugar a fatalismo. Já estávamos definitivamente num outro patamar, numa dimensão onde poucos conseguem chegar.
Diz a lenda que o grande capitão, João Pinto, só largou a taça em 2004 para que de novo todos rejubilássemos com um êxito de semelhante envergadura.Entre 1987 e 2004, entre 2003 e 2011, entre os trofeus de campeão do Mundo com a Supertaça Europeia pelo meio nada de especial aconteceu. Apenas a normalidade de continuar a ganhar. 25 anos desde aqueles dois golos em que não paramos de vencer. É o calcanhar de Aquiles de todos os Portistas: Não sabemos perder. Não fomos assim educados.Não tivemos aulas práticas sobre o assunto. Choro quando o Porto perde como choraria com 7 anos se perdesse aquela final. Enfim…Costuma-se dizer que todos temos um calcanhar de Aquiles. Mas apenas nós,Portistas, teremos para sempre no outro pé, o calcanhar do Madjer.